Em Portugal alguma atenção tem sido dada à toponímia dita maior (nomes dos povoados, grandes rios, etc.), mas pouco se tem investigado em relação à toponímia dita menor ou microtoponímia (sobretudo nomes de locais perdidos pelo campo). Hoje, porém, a esmagadora maioria dos autores não fazem destrinça entre toponímia maior e menor, sendo mesmo desaconselhado fazer tal distinção. É verdade que a toponímia dita maior é mais estável, mas os motivos que lhe deram origem podem estar deslocados ou terem desaparecido. Por seu lado a toponímia dita menor é mais precisa e por vezes mais transparente e fidedigna, pois não está sujeita às decisões de fixação das autoridades políticas e administrativas, apresentando grande variedade de fontes, pois uma simples oliveira pode ter um nome extremamente antigo que apenas uma família conhece. Llorente Maldonado dá grande ênfase ao elevado “valor de indício” que têm os topónimos ditos menores, referindo que Schulten apenas conseguiu descobrir a localização dos sucessivos acampamentos das tropas romanas em Numancia, graças a um exaustivo estudo da toponímia menor e maior da comarca soriana, (LLORENTE MALDONADO, A.(1970)11).
Pulsando e batendo sempre, o coração do tempo vai bombeando passagens, gentes, pesares, história, quereres, acontecimentos que se revelam em todos os aspectos da vida. Uma vida que se vai diluindo na geografia, na terra, nos cultivos, nas águas, nos rios, na zoologia, na botânica, na indústria, nas ermidas, nos deuses e diabos que contornam uma sociedade determinada num determinado momento, que renasceu doutra que finou sem morrer, pois vive integrada nos interstícios das sociedades emergentes a que deu origem, sem nunca ser capaz de morrer totalmente.
Como se de um ser vivo se tratasse, a toponímia muda com a passagem dos tempos. Cada topónimo é uma pegada de dinossauro, é mais uma ruga na pele dos povoados e despovoados, na paisagem, no ambiente, onde deveria poder ler-se quem, quando, e como essas gentes conceberam um espaço geográfico, uma língua, uma economia, um sistema político, uma sociedade especifica. Cada topónimo, quando nasce, obedece a uma motivação concreta. Quando evoluiu ou se perdeu a causa, a língua ou a razão pela qual um determinado topónimo foi criado, os pedaços de vida, aparecem maquilhados e nós tentamos através de analogias, correctas ou incorrectas, obrigá-los a falar a nossa língua, a nossa cultura, o nosso tempo, (ARIAS, J.C.(1995)17). Para poder ler na Toponímia, torna-se portanto necessário dominar um saber muito vasto, integrado no tempo, e integrado entre si, sem compartimentações, complexo[2]. Isto significa que a Toponímia é uma “ciência” inter e transdisciplinar, que não pode prescindir de ciências como a filologia e linguística claro está, mas também da geografia nas suas várias vertentes (física – climatologia e geomorfologia; e humana – histórico-civilizacional e economico-social), da história na longa tradição que a liga com a geografia, da antropologia, da biologia e ecologia, da física e química, da sociologia, da filosofia, da arquitectura, da engenharia, do direito, etc., pois cada uma destas ciências encerra saberes que nos podem permitir levantar uma ponta do véu, não apenas da origem, mas também das relações, associações e possíveis evoluções. Tudo, absolutamente tudo o que se passe num determinado espaço geográfico – e todos os povos ou gentes, absolutamente todos – mais tarde ou mais cedo, vão reflectir-se nos nomes de sítios e lugares. Menéndez Pidal, grande sábio espanhol, refere-se desta forma aos nomes de lugar:
“Los nombres de lugar son viva voz de aqueillos pueblos desaparecidos, transmitida de generación en generación, de labio en labio, y que por tradición ininterrumpida llega a nuestros oídos en la pronunciación de los que hoy continúan habitando el mismo lugar...” (MENÉNDEZ PIDAL, R.(1968).
Podemos também analisar os topónimos através das suas relações espaciais, estudando a geometria que define o seu perímetro. Onde está o centro espacial do topónimo? Qual o elemento humano, geográfico ou físico que lhe deu origem? Será que esse elemento, a existir, ainda se mantém no centro, ou houve outros topónimos que se introduziram e compartimentaram o anterior? Como evoluiu o território de cada topónimo? De forma circular em relação ao seu centro espacial, rectangular, trapezoidal, filiforme, etc.? Como se articula o território de cada topónimo em relação a outros mais pequenos contidos no seu seio, ou a outros maiores que o contêm? Podemos assim estabelecer relações espaciais entre topónimos, pois estes constituem uma referenciação espacial do infinitamente pequeno até ao infinitamente grande: o microtopónimo que não tem mais que alguns metros quadrados (A Leira da Andrineira), o topónimo que referencia alguns hectares (Orreta), o topónimo que referencia parte de um termo (de cima, de baixo), o topónimo que referencia todo um termo (Sendim), o concelho (Miranda do Douro), a região natural vs. homogénea (Terra de Miranda – Planalto Mirandês), o distrito (Bragança), a região (Trás-os-Montes), o país (Portugal), a península (Ibérica), o continente (Europa), todo o planeta (Terra), o sistema planetário (solar), a galáctica (Via-láctea).
A estabilidade e duração/mutação da toponímia é também fundamental para podermos datar e perceber evoluções, para podermos identificar momentos históricos, referindo a este sujeito Josep Maria Albaigés:
“Pero hay algo más duradero que la piedra, que un cuadro, que un libro, incluso que la memoria humana misma. Es el nombre de una cosa, esa segunda y definitiva existencia que, como narra la Biblia, Adán daba a los seres, incorporándolos al mundo humano, el que verdaderamente cuenta. El nombre, que saltando de generación en generación vive en sus hablantes, preservando del olvido ese mágico instante en que la cosa obtuvo verdadero ser.”, (ALBAIGÉS, J. M.(1998)7).
Cada topónimo guarda na sua designação o tipo de actividades agrícolas, industrias, de povoamento, de conquistas e reconquistas e outras desenvolvidas pelo homem e pela natureza dentro desse espaço e, quando não temos registos históricos escritos, podemos utilizar as designações de topónimos como verdadeiros documentos, como verdadeiras fontes históricas[3], que nos podem fornecer informações riquíssimas e da mais variada natureza.
Sabemos que “entidades ou organizações” (famílias, empresas, aldeias, cidades, países), só existem verdadeiramente quando têm uma história associada a si, um mito. Assim podemos, explorar a ideia de topónimo-monumento, como se faz para uma catedral de uma cidade. Cada território de um determinado topónimo foi construído como um monumento, como um palácio. De forma prática podemos estabelecer circuitos na natureza, que atravessem os mais variados topónimos e apetrecha-los com placas e sinalética como nas estradas, que expliquem aos passantes a evolução da paisagem. O porquê da sobreposição das suas camadas de história, mitos, povos, vias de comunicação, flora, fauna, sistemas políticos e sociais, sistemas culturais, agrícolas ou industriais, etc., sem no entanto cair dentro de uma mirada exclusivamente antropocêntrica, pois todos os seres podem ter estatuto de sujeito.
Podemos também desvendar na Toponímia, associações e interacções vegetais e animais, ensinamentos que nos permitem recuperar espécies em perigo, etc. Existem estudos que realçam o redescobrimento do conhecimento ecológico tradicional como intervenção adaptativa, vendo-se hoje nascer novas disciplinas que aprofundam estes campos de investigação tais como: Terralíngua ou Etnobiologia.
Também o povo, através de uma “etimologia popular”, sente necessidade de atribuir uma motivação e significação aos topónimos com que convive diariamente, pois passados tantos anos já lhe perdeu o significado originário e precisamente por isso, esses nomes ganharam o estatuto de topónimos. Embora eu sempre tenha registado com agrado e atenção essa “etimologia popular”, não podemos aceita-la sem primeiro nos debruçarmos sobre o seu estudo.
Os nomes de lugar não cristalizam apenas o mero reflexo da descrição paisagística do espaço que referenciam. A eles anda também agarrada uma profunda raiz mítica, que nos vem já dos primeiros homens que foram habitando e “domesticando” os espaços, criando divindades, deuses e demónios. Mesmo sofrendo um processo de alteração constante, os topónimos são documentos quase indestrutíveis, que plasmam a história da humanidade, as suas crenças, os seus temores, as suas esperanças, a quem os homens atribuíram nomes próprios.
Os velhos túmulos e velhos monumentos foram saqueados por ladrões e salteadores de tesouros milenares. Os topónimos estiveram sempre protegidos desses roubos e constituem hoje um corpus vivo das sucessivas linguagens humanas que deram nomes às forças da natureza. Por meio de fórmulas, com linguagem especialmente codificada, que catalisasse a seu favor essas forças, com o objectivo de as aproximar, foram divinizadas pelo homem. Em tempos mais recuados, com objectivos materiais, solicitava-se caça abundante, força, saúde, fertilidade. Em tempos mais próximos, utilizando reflexões racionais mais profundas e transcendentes, procurava-se a vida depois da morte, o renascimento, ou melhor dizendo a não-morte, (ARIAS, J.C.(1995)18).
Na mitologia de qualquer civilização constitui tema “o celeste” com os seus combates de luzes e sombras. O sol, os astros, a água, o fogo, a tormenta com o trovão e o raio. Os deuses da mitologia greco-romana são ainda a cristalização dos velhos deuses neolíticos.
Ainda hoje a Virgem Maria, “a mãe”, se multiplica numa vastidão de nomes, o mesmo acontecendo com as Santas que emprestam o seu nome aos topónimos. Teriam tido todas origem numa versão feminina da mesma divindade dos primórdios da humanidade, a quem os romanos deram o nome de “Vénus”? Esta “Vénus”, teve por sua vez origem na representação da água divinizada, na imensidão do mar, no rio sem princípio e sem fim, nas fontes que faziam brotar delas água misteriosa. Por um lado, as nascentes de água clara, fonte de vida salutar e por outro o rio de torrentes demoníacas, barrentas e raivosas, fonte de morte. Na Galiza, bem como na nossa região, há ainda lugares de culto junto às fontes e rios a “Santa Marina”, a santa da água, mas que ninguém sabe ao certo quem foi. Esta antiga deusa da água regeneradora, mas também das águas impetuosas e mortais, podia ter velhas representações na forma de truta, salmão ou cobra de água, (ARIAS, J.C.(1995)22). Desde a pré-história o seu culto nunca se interrompeu, embora venha tomando nomes novos, encarnados noutras santas, como “Santa Luzia”, “Senhora da Ribeira” ou “Virgen del Carmen”.
Tal como a divindade da água, também a divindade solar recebia sobrenomes como “o elevado”, “o augusto”, “o vitorioso”, “o redondo”, “o ardente”, “a cabeça”, referindo-se à vitória do jovem sol nascente sobre as trevas da noite, (ARIAS, J.C.(1995)22).
As relações linguísticas da identificação água-deusa mãe-fertilidade-morte, vêm já do paleolítico, (ARIAS, J.C.(1995)20), por isso se analisarmos os topónimos à luz da pré-história, da história, da sociologia rural e da antropologia, cruzando esses resultados com estudos que foram feitos para a origem dos costumes regionais, verificamos que a toponímia encerra um conjunto de mitos longínquos. Por isso encontramos essa simbologia presente na toponímia (ARIAS, J.C.(1995)15-27), nos ritos e crenças (ESPÍRITO SANTO, M.(1980)155), nos contos da literatura oral, ou ainda na decoração dos objectos de utilização diária como os peixes, aves e cobras dos Pica-Puortas (NOBRE, J.A.(2001)29).
A inventariação, preservação e referenciação espacial do legado toponímico que temos, património imaterial valioso, é uma urgência. Este artigo vai portanto no sentido da tomada de consciência.
BIBLIOGRAFIA
ALBAIGÉS, J. M.(1998) Enciclopedia de los topónimos españoles, Barcelona: Edic. Planeta.
ARIAS, J. C.(1995) Toponimia y mito. El origen de los nombres. Barcelona: Oikos-tau.
ESPÍRITO SANTO, M.(2000) Comunidade rural ao norte do Tejo seguido de vinte anos depois, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
FERREIRA, Carlos (2003) “Ls Chamadeiros Cumo Fuonte d’Anformaçon, L caso de la Tenerie de Sendin” In Filandar / O Fiadeiro nº 14 (2003) 18-24.
FEREEIRA, Carlos (2003)¹ “Toponímia, Paisagem e Ambiente, Uma abordagem geotoponímica de Sendim em Terra de Miranda (Um estudo de geografia rural e regional). Tese de mestrado disponível na biblioteca municipal de Miranda do Douro.
LLORENTE MALDONADO, A.(1970) Toponimia e historia. Discurso de apertura, Granada: Universidade de Granada.
MENÉNDEZ PIDAL, R.(1968) Toponimia prerrománica hispánica Madrid: Gredos.
MORIN, E. (1990) Introduction à la pensée complexe, Paris: ESF. Traduc. portuguesa, Introdução ao Pensamento Complexo, Lisboa: Instituto Piaget 2001.
NOBRE, J.A.(2001) “Os Pica-Puortas em Terra de Miranda” In: Brigantia Vol. XXIII N.º 1/2 (2003) 23-34.
RIBEIRO, O.(1987) Intrudução ao estudo da geografia regional, Lisboa: João Sá da Costa (2ª edição de 1995).
[1] Este artigo é em boa parte retirado da minha tese de mestrado (2003): “Toponímia, Paisagem e Ambiente, Uma abordagem geotoponímica de Sendim em Terra de Miranda (Um estudo de geografia rural e regional), disponível na biblioteca Municipal de Miranda do Douro. Aí poderá ser encontrado um tratamento mais desenvolvido da toponímia.
[2] A Geografia é antes de mais uma ciência da complexidade e da síntese, (RIBEIRO, O.(1987)7-37). Sobre o conceito de complexidade ver (MORIN, E. (1990)8).
[3] Sobre esta questão ver o meu artigo: FERREIRA, Carlos (2003) “Ls Chamadeiros Cumo Fuonte d’Anformaçon, L caso de la Tenerie de Sendin” In Filandar / O Fiadeiro nº 14 (2003) 18-24.
Carlos Ferreira